A Bruxaria no contexto da Inquisição. Julgar os fatos do passado sem anacronismo*.

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* O anacronismo é uma forma equivocada onde tentamos avaliar um determinado tempo histórico à luz de valores que não pertencem a esse mesmo tempo histórico.

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A magia foi outra das causas da Inquisição; era o culto da superstição, sortilégio, alquimia, culto e pactos com o demônio, que se faziam no “Sabath”.

A crença na magia e nas “bruxas”, sempre existiu nos tempos antigos e medievais. A justiça leiga combatia a magia e perseguia os magos e as bruxas severamente. A legislação os reprimia; muitas vezes, eram punidos de leve pelo tribunal eclesiástico, mas depois eram de novo castigados com a morte pela justiça leiga.

Na magia o sujeito pretende ter domínio sobre as forças da natureza e assim produzir fenômenos contra ela, com auxílio de forças ocultas vindas do além, onde entra muita superstição (rezas, adivinhações, amuletos, elixires, etc.). A bruxaria apela para a intervenção do demônio; acreditavam que as bruxas voavam em vassouras ou sobre animais, que na verdade são demônios.

Segundo os historiadores, tudo isso gerava sérios problemas sociais, morais e religiosos; os magos e bruxos com os seus “poderes” amedrontavam a população e tiravam proveito disso. Tomavam dinheiro de seus clientes mediante “trabalhos” que envolviam assassinatos, envenenamentos, infanticídios, fraudes, violências e orgias sexuais. Eram recomendados feitiços de muitos tipos: para prejudicar pessoas, matar animais, conseguir amor ou desamor, morte, cegueira, doença, envenenar cursos de água, matar plantações e gado, provocar tempestades, raios, incêndios, etc.

No Sabath se realizava a “missa negra” nos dias santos, com a imagem de satã sobre o altar, nessa famosa assembleia do sábado à meia noite onde as bruxas e bruxos se reuniam sob a presidência do diabo em forma de bode.

O Prof. Gonzaga assim narra:

“Começava a festança quando todos deviam beijar o traseiro desse animal. Seguiam-se comidas e bebidas fartas, em meio a imensas orgias e depravações sexuais, inclusive com os demônios presentes, e era voz corrente que também se procedia ao sacrifício ritual de crianças” (p. 163).

O historiador Gustav Heningsen, no Simpósio do Vaticano (1998) diz que é preciso cuidado ao recorrer ao diagnóstico psiquiátrico para explicar a bruxaria, porque a maioria dos que se dedicavam a isso, eram pessoas perfeitamente normais, apenas influenciadas pelo ambiente em que viviam.

Assim, a bruxaria e a magia eram encarados como grandes perigos morais e religiosos e perturbavam a pureza da fé cristã. É preciso dizer que Lutero “proclamava ódio aos “possuídos pelo demônio”, que no seu entender, deviam ser lapidados antes de enviados à fogueira; e o mesmo foi o pensamento de Calvino” (Gonzaga, p. 165). Isso mostra a cultura da época que atingia a todos.

Em nossos dias nenhum teólogo afirma que o demônio pode efetuar o ato sexual. Ele é puro espírito. Os antigos, porém, tinham dificuldade de conceber um espírito puro, isento de corpo, ainda que etéreo. Os estoicos imaginavam o pneuma divino como algo de corpóreo a penetrar o mundo material. Os judeus iam mais longe: admitiam que os anjos tivessem pecado sexualmente com mulheres, dando ocasião ao dilúvio narrado em Gn 6-9.

“Naquele tempo viviam gigantes na terra, como também daí por diante, quando os filhos de Deus se uniam às filhas dos homens e elas geravam filhos. Estes são os heróis, tão afamados nos tempos antigos.”

Dom Estevão Bettencourt assim analisa o texto:

“A tradição rabínica e as primeiras gerações cristãs interpretaram “os filhos de Deus” como sendo os anjos, que se teriam unido a mulheres, de modo a gerar descendentes. Tal modo de ver foi consignado (citado), mas não abonado, pelos escritos no Novo Testamento; ver Jd 6; 2Pd 2,4. Com o tempo caiu em descrédito, de sorte que no século IV já era contestado por autores cristãos. É de notar que os anjos não podem ter cópula carnal com mulheres visto que não têm corpo. A interpretação correta vê nos “filhos de Deus” uma população fiel à Lei do Senhor e nas “filhas dos homens” a população infiel ou – como dizem alguns, querendo mais precisão – tratar-se-ia de setitas e cainitas.” (ver Gn 4, 17-24 e 5, 1-32)” (PR, Nº 526 – Ano 2006 – p. 159).

Na Tradição cristã, esta concepção esteve presente até o fim da Idade Média, como se vê; mas nunca foi dogma de fé, apenas tese comum, afirma D. Estevão.

Mas, como o povo assim pensava e acreditava na existência de íncubos e súcubos (demônios machos e fêmeas, respectivamente, que podiam ter relações sexuais com mulheres ou homens), reagia energicamente contra esse grande mal; o faziam de boa fé, embora estivessem errados.

Por “feiticeira” ou “bruxa” entendia-se, naquela época, uma mulher que tinha relação sexual com um demônio masculino (íncubo) ou um homem que tinha relações com um demônio feminino (súcubo). Dessas relações nasceriam filhos enfeitiçados e malvados. Essa mentalidade surgiu com os povos pagãos do norte, os bárbaros celtas; mas penetrou fortemente no cristianismo da Idade Média depois que o rei Carlos Magno (†814) dominou os anglos saxões do norte. Ali havia as feiticeiras druidas.

Essa crença muito antiga se espalhou por toda a Europa cristã num tempo em que a superstição ainda se misturava com a fé da Igreja. A bruxaria era algo visto como terrível. A Igreja combatia essa superstição e condenava a perseguição às bruxas.

Em 19 de abril de 1080, o Papa Gregório VII (1073-1085), enviou uma carta ao rei Hoakon da Dinamarca em que condenava e perseguia a bruxaria existente naquele país. Esta carta está no artigo do Prof. Gustav Henningsen (Atas do Simpósio do Vaticano – La Inquisicion ey las Brujas, p. 595). Nela o Papa S. Gregório VII censurou o rei da Dinamarca (Hoakon) por ter mandado queimar mulheres acusadas de bruxaria, queixando-se de se culpar certas mulheres de causar tempestades e epidemias e todos os males, e matá-las de modo bárbaro. O Papa pediu ao rei que ensinasse o povo que aquelas desgraças eram vontade de Deus, as quais deveriam ser aplacadas com penitências e não castigando as mulheres.

Um beneditino de Weihenstephan revoltou-se contra a execução de três mulheres acusadas de bruxaria, e diz que elas foram “mártires da loucura do povo”. Em 1280, a pedido do bispo de Valência, na Espanha, Arnaldo Villeneuve redigiu um tratado contra essas aberrações. Isto mostra que não partiu e nem começou com a Igreja a ideia de lançar as bruxas nas fogueiras, mas era uma iniciativa do povo e dos governantes.

Dez anos depois se tentou no reino católico da Hungria, por edito de lei, acabar com a crença nas bruxas, em decreto promulgado pelo rei Colomon (1095-1114).

“Houve queima de bruxas pelo povo em 1024 em Souzdal, em 1071 em Rostov, e em 1227 em Novgorod. Em 1153 um viajante árabe Abu Hamid al-Gharnati, visitou Kiev e descreveu como as bruxas eram submetidas às ordálias da água: “Aquelas que se mantinham na superfície eram declaradas bruxas e queimadas, as que afundavam ficavam limpas e eram colocadas em liberdade.” (Atas, SV, p. 549).

Segundo o historiador Gustav Henningsen, também na Rússia a Igreja condenou a crença nas bruxas. Durante um período de fome em Vladimir, entre 1271 e 1274, o bispo Serapião pregou contra a ordália da água e condenou como superstição o costume de atribuir a causa de catástrofes naturais às bruxas. (idem)

É importantíssimo notar o que Henningsen afirmou no Simpósio:

O certo é que muito ao contrário do que se crê, as perseguições às bruxas não foram por iniciativa da Igreja, mas manifestação de uma crença popular, cuja bem documentada existência se remonta à mais longínqua Antiguidade”. (idem, p. 568).

“Há novos testemunhos sobre perseguição de bruxas sem o consentimento da Igreja”. E ainda: “Não encontramos nada sobre as bruxas nos primeiros manuais do Santo Ofício” (S V, p. 569).

Henningsen, especialista na questão, analisa o medo da bruxaria como uma crença popular com base em um sistema de ideias mágicas de certas pessoas que, se supõe, ameaçam destruir a sociedade por dentro. A maioria dessas pessoas são mulheres, mas há também homens. Considera-se que essas pessoas têm um poder natural inato, não adquirido por técnicas, mas herdado, ou obtido mediante pacto com demônios. Por isso, acreditava-se que o simples toque, olhar, de uma bruxa podia fazer mal à pessoa. Isso provocava pânico na sociedade da época.

Henningsen mostra que o fenômeno das bruxas é algo quase universal; eles afirmam que pode-se comprovar que há algo comum na bruxaria europeia, asiática e africana; como por exemplo: as reuniões noturnas secretas das bruxas, com a celebração de banquetes à base de carne de seus próprios parentes; com um poder inato para fazer mal aos outros; o poder delas se transformarem em animais e voar pelos ares; deixar na cama um corpo falso em lugar do seu corpo enquanto vai à reunião noturna das bruxas; e outras coisas.

Ainda hoje a bruxaria continua em muitos lugares. A Revista Veja (n.2106 ) trouxe a seguinte afirmação de Ziada Nsembo, secretária geral da Fundação de Albinos da Tanzânia, falando do assassinato de albinos em rituais de bruxaria em nossos dias: “Os bruxos pedem muito dinheiro para fazer a bebida com os corpos dos albinos”.

A Crônica de Graz na Áustria, em 1115, fala de “30 mulheres que foram queimadas no mesmo dia”, pelo povo, sem a aquiescência da Igreja.

Entende-se que isso era fruto da falta de conhecimentos científicos que hoje temos e também por causa dos grandes sofrimentos do homem medieval (pestes, guerras, doenças, invasões bárbaras, saques, etc.). O misticismo acabava vendo no demônio quase o único culpado de todos os males. Daí o rigor para punir quem tivesse parte com ele. Assim, bruxos e bruxas se tornaram como que os “bodes expiatórios” para o povo desabafar seus males.

Um caso citado no Dicionário de Teologia Católica, francês, (DTC) é esclarecedor; afirma que:

“Em 15.10.1346 a Inquisição de Exilles (Dauphiné, França) sentenciou um mago por quatro delitos. Confesso e arrependido, ele recebeu apenas penitência de jejuns e peregrinações. Mas a “Cour maige” (Corte de magia) civil também o processou e o condenou à morte por 15 delitos, dos quais citamos os seguintes: 1) Teve relações com o demônio; 2) renegou a Deus e pisou a cruz com os pés; 3) escutou os conselhos do demônio; 4) o demônio proibiu-o de beijar a cruz. Estes quatro delitos são mencionados nas sentenças dos dois tribunais, mas o tribunal leigo continua: Compôs pós mágicos; cometeu malefícios e assassinou crianças; foi ao “sabat”; cometeu envenenamentos…” (Bernard, p. 13)

A maioria do povo era supersticioso, a pureza do Evangelho ainda não havia dominado a cultura; e as pessoas viam nos magos e bruxas seus maiores inimigos, por isso praticavam inúmeras violências e mortes desses na fogueira, contra a vontade da Igreja. Alguns adversários da Igreja falam absurdamente em “milhões” de bruxas queimadas na fogueira da Inquisição. É uma acusação anti-histórica como ficou claro no Simpósio do Vaticano.

Fonte: http://cleofas.com.br/a-bruxaria-e-a-feiticaria-no-contexto-da-inquisicao-parte-3/

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