Transubstanciação: O que é?

Ano Eucarístico de Sião | Ano Eucarístico de Sião | Escrito por Administrator

 Em síntese: A palavra “transubstanciação”exprime a conversão da substância ou da realidade íntima do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo. A verdade assim formulada está nos escritos do Novo Testamento (cf. Mt 26,26-28 e paralelos), foi aprofundada na teologia posterior, que recorreu a um termo próprio para significar o mistério da fé. – O artigo subsequente explana a história e o sentido do vocábulo “transubstanciação”.

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      Frente a cristão que rejeitam o vocábulo “transubstanciação”, o presente artigo expõe o significado desta palavra após esboçar o seu hitórico.

      A presença real do Senhor na Eucaristia é professada como consequência da transubstanciação do pão e do vinho, ou seja, consequência da conversão da substância do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo.

      O termo transubstanciação, na linguagem teológica, só se tornou corrente a partir do século XII, embora a realidade por ele expressa já fosse professada pela S. Escritura e pelas subsequentes gerações cristãs. Esse vocábulo representa todo o esforço de inteligência cirstã que, procurando no decorrer dos tempos uma ilustração racional do depósito revelado ou do mistério da fé, finalmente a encontrou, e encontrou muito profunda e harmoniosa.

 1.      Um pouco de história

     No século Xl um concílio regional de Roma (1079), recolhendo os dados da tradição teológica anterior, redigiu a seguinte profissão de fé:

     “Intimamente creio e abertamente confesso que o pão e o vinho colocados sobre o altar, meidante o mistério da oração sagrada e as palavras do nosso Redentor, se convertem substancialmente (substantiater convert) na verdadeira, própria e vivifica carne e no sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo; e... que depois da consagraçào, há o verdadeiro corpo de Cristo, o qual nasceu da Virgem, foi oferecido para a salvação do mundo, pendurado a cruz e ora está assentado à direita do Pai;  há tambem o verdeiro sangue de Cristo, que jorrou do seu lado... na propriedade da sua natureza e na realidade da sua substância”(DS 700).

      No século Xlll o Concílio de Constança (1415 – 1417) e Florença (1438 – 1444) repetiram, em suas definições, o temo que assim se tornara clássico na teologia.

 S. Agostinho (+ 430) observa:

     “O que vedes, caríssimos, na mesa do Senhor, é pão e vinho; mas esse pão e esse vinho, acrescentando-se-lhes a palavra, tornam-se corpo e sangue de Cristo... Tira a palavra, e tens pão e vinho; acrescenta a palavra, e já tens outra coisa. E essa outra coisa que é? Corpo e Sangue de Cristo. Tira a palavra, e tens pão e vinho; acrsecenta a palavra, e tens um sacramento. A isso tudo vós dizeis: ‘Amem’. Dizer ‘Amem’ é subscrever. ‘Amem’ em latim significa: ‘É verdade’. (Sermão 6,3)

 O Concílio de Trento em 1551 professou:

     “Uma vez que Cristo nosso Redentor disse que aquilo que oferecia sob a espécie de pão era verdadeiramente o seu corpo (Mt 26,26; Mc 14,22; Lc 22,19; 1Cor 11,24), sempre houve, na Igreja de Deus, esta mesma persuasão que agora este Santo Concílio passa a declarar: pela consagração do pão e do vinho efetua-se a conversão de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo Nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue. Esta conversão foi com muito acerto e propriedade chamada pela Igreja Católica transubstanciação” (DS 1642; cf DS 1652)

      Pergunta-se agora: como entender o vocábulo-chave?

 2. Explanação sistemática

     Quais as idéias que se prendem ao termo transubstanciação?

      Partamos das noções de substância e acidentes tais com o bom senso nô-las sugere. Em todo ser há fundamento para distinguir entre um conjunto de notas contingentes, mutáveis, tais como o tamanho, a cor, o peso, o sabor, etc. E um substrato permanente que, conservando-se sempre o mesmo, dá unidade e coesão ao sujeito manifestado por suas notas sucessivas e variadas, ou seja, por seus acidentes. Esse substrato é, em Filosofia, chamado substância (= o que sub-está, o que suporta). Em qualquer pedaço de pão, por conseguinte, há um conjunto de notas acidentais, como a cor, as dimensões, o sabor, a posição no espaço, notas que podem sobrevir, mudar-se e desaparecer numa substância que as sustenta; esta substância, porem, é uma realidade cuja existência se impõe ao raciocínio.

      Pois bem, a fé ensina que, quando as palavras da consagração são pronunciadas sobre o pão, a substância deste se muda ou converte totalmente em substância do corpo humano de Jesus (donde o nome “transubstanciação”), ficando, porém, os acidentes ou as notas externas do pão; sendo assim, sem mudar de aparência, o pão consagrado já não é pão, mas é substancialmente o corpo de Cristo. Análogo fenômeno se dá com o vinho; ao serem pronunciadas sobre ele as palavras da consagração; sua substância se converte no sangue do Senhor. – Não há dúvida, é este um caso de intervenção da Onipotência divina que não tem par em toda a ordem da natureza. Vê-se, porém, que, embora único, o fenômeno da transubstanciação não é absurdo; antes, tem seus pontos de contato com as categorias da filosofia e da inteligência humanas.

      A concepção acima explica muito bem como o corpo de Cristo possa simultaneamente estar presente em diversas hóstias consagradas e em regiões múltiplas. Com efeito, Jesus não está presente na Eucaristia segundo as suas notas acidentais (entre as quais se enumera o ubi ou a localização no espaço); o ubi do corpo eucarístico de Cristo é-lhe dado pelo pão (isto é, pelo acidente ubi do pão). Ora, já que os fragmentos de pão se multiplicam com o seu ubi ou a sua localização própria no espaço, vê-se que, onde quer que ele haja um pedaço de pão consagrado, aí pode estar, e de fato está, o corpo eucarístico de Cristo.

      Em linguagem precisa, dir-se-á: a presença de Cristo eucarístico é presença no espaço, mas não é presença espacial ou local: é presença no espaço, porque, não há dúvida, o Cristo eucarístico entra nos nossos espaços, mas mediatamente, isto é, mediante o espaço que o pão ocupa.

      Não é presença espacial ou local, porque Cristo na Eucaristia só existe como substância da qual os acidentes “quantidade” e “localização no espaço”, por disposição da Onipotência divina, não exercem seu efeito próprio. A substância, enquanto substância, é um puro princípio de ser; como tal, ela não implica localização; ela só entra em relação com o lugar ou o espaço mediante o acidente chamado “ quantidade”, que lhe dá sua extensão e as suas dimensões próprias.

      Isto faz que a presença do Cristo eucarístico se possa multiplicar (sem que o corpo de Cristo se multiplique), desde que se multipliquem os fragmentos de pão consagrados nas mais diversas terras do globo. Não há bilocação nem multiplicação do Corpo de Cristo, porque simplesmente não há locação do mesmo, mas apenas locação e multilocação do pão consagrado.

      As idéias acima também explicam que o corpo de Cristo não se parta nem se divida quando se divide a hóstia consagrada. O corpo de Cristo sob os acidentes do pão não tem extensão nem quantidade próprias; por conseguinte, não se pode dizer que a tal fragmento da hóstia corresponda tal parte do corpo de Cristo (é óbvio que as dimensões de uma hóstia pequenina não seriam comensuráveis com as do corpo do Senhor). Por conseguinte, quando o pão consagrado é partido, só se parte a quantidade do pão, não o corpo mesmo de Jesus.

      Assim muitas hóstias e muitos fragmentos de hóstia não constituem muitos Cristos – o que seria absurdo –, mas muitas “presenças” de um só e mesmo Cristo. Analogicamente a multiplicação dos espelhos não multiplica o objeto original, mas multiplica a presença desse objeto; também a multiplicação dos ouvintes de uma sinfonia não multiplica essa sinfonia, mas apenas a presença da mesma.

      À luz de quanto acaba de ser dito, entende-se outrossim que, quando se deteriora o pão eucarístico por efeito do tempo, dos sucos digestivos ou de um agente corruptor, o que se estraga são apenas os acidentes do pão; quantidade, cor, figura... (estes acidentes é que evidentemente são atingidos pela deterioração); quanto ao corpo de Cristo, simplesmente deixa de estar presente sob os véus eucarísticos desde que estes sofram alteração tal que, segundo o bom senso, não possam mais ser identificados como tais; foi às espécies ou as aparências de pão e vinho, não às de algum outro corpo, que Cristo quis assegurar a sua presença sacramental.

 3. Transubstanciação e Física moderna

      A doutrina exposta não sofre contestação por parte da Física moderna.

      Na verdade, a linguagem e a conceituação desta não interferem na linguagem e na conceituação da Filosofia e da Teologia. Ao falar de substância e matéria, por exemplo, o físico não tem em mira a mesma realidade que o filósofo e o teólogo. O físico descreve a substância, matéria e, em geral, os corpos (a massa) de acordo com as reações dos mesmos ou os fenômenos que ele pode observar com os sentidos. O filósofo, ao contrário, entende por substância das coisas materiais uma entidade muito real, mas só perceptível pela inteligência. Os fenômenos, objeto único de que se ocupa o físico, são, para o filósofo, acidentes da substância; por conseguinte, as teorias da Física moderna, com as suas grandes inovações, se referem àquilo que em filosofia se chama “acidentes”, ao passo que a doutrina eucarística tem por objeto a substância, elemento de que as ciências naturais não tratam, porque não é objeto imediato de observação empírica.

      Note-se, porém, que o magistério da Igreja, professando repetidamente a doutrina da transubstanciação, de modo nenhum associou o dogma a determinada escola filosófica. Embora os conceitos de substância e acidente tenham sido filosoficamente elaborados pelo Aristotelismo, é no seu sentido óbvio, acessível ao senso comum, que a Igreja entende estes dois vocábulos. Com efeito, mesmo a gente simples apreende o que é uma substância: a realidade que faz que um corpo seja e permaneça tal sob as mudanças de superfície (ou acidentais) que lhe possam ocorrer. Assim como o comum dos homens compreende o que se quer dizer quando se afirma que um corpo permanece substancialmente o mesmo sob as variações acidentais que se lhe possam infligir, assim entende também o que se quer asseverar quando se diz que, na Eucaristia, há mudança de substância, enquanto as aparências acidentais permanecem invariadas.

      Estas considerações de índole especulativa devem ser contempladas pela observação seguinte:

      A fé professa uma conversão total e absoluta da substância do pão na do corpo de Cristo de tal modo que o Concílio de Trento rejeitou a doutrina de Lutero, que admitia a “empanação” de Cristo; empanação, segundo a qual permaneceriam a substância do pão e a do vinho junto com a do corpo e a do sangue de Cristo; o pão continuaria a ser realmente pão (e não apenas segundo as aparências), o vinho continuaria a ser realmente vinho (e não apenas segundo as aparências), de tal sorte que o corpo de Cristo estaria com que“ revestido” de pão e vinho. Para o Concílio de Trento e, consequentemente, para a fé católica, esse tipo de presença de Cristo na Eucaristia é insuficiente; é preciso dizer que o pão e o vinho, em sua realidade intima (substância), deixam de ser pão e vinho para se tornar a realidade mesma do corpo e do sangue de Cristo.

      Como na criação há produção de todo o ser ( productio totius entis ), assim na  Eucaristia  há a conversão  de  todo  o  ser  ( conversio  totius  entis ).   Ora “conversão de todo o ser” é “conversão de toda a substância” ou “conversão substancial” ou “transubstanciação”.

      Paralelamente, assim como só Deus pode criar, só Deus pode “transubstanciar”; uma e outra atividade supõem o poder infinito do Altíssimo, que pode fazer do “não ser” o “ser”. As criaturas só podem de “tal ser” fazer “tal outro ser”; elas não abrangem o ser como tal, ma apenas aspectos do ser.

 Por Dom Estevão Bettencourt

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”

D. Estevão Bettencourt, osb.

 

Nº 473 – Outubro - Ano 2001 – Pág. 475 a 479

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