Há um sentido no universo?

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Por Mariano Artigas 

A pergunta que aparece no título é quase tão antiga como a própria humanidade. Enquanto uns defendem a ação de uma inteligência superior, outros pensam que tudo se processa por puro acaso. Nesta palestra proferida no Centro de Extensão Universitária, em São Paulo, no dia 13 de agosto de 2001, o autor contrapõe estas duas correntes de pensamento e analisa a sua pertinência. O texto resume algumas das principais idéias comentadas pelo autor durante a exposição do tema.

 

 

Desde a Antigüidade até os nossos dias, discute-se se existe um sentido no Universo. Os “finalistas” afirmam que existe um sentido direcional que deve ser interpretado como uma finalidade; esta posição corresponde à atitude natural do homem diante da natureza, e relaciona-se facilmente com a afirmação de uma providência divina que governa o curso dos fenômenos naturais. Os “antifinalistas”, por sua vez, negam que exista uma finalidade na natureza ou, ao menos, que possamos conhecê-la, e costumam rejeitar a existência de uma Providência divina; os seus argumentos pretendem apoiar-se, freqüentemente, no progresso das ciências.

A finalidade opõe-se ao acaso. Dizemos que algo acontece “por acaso” quando é o resultado de coincidências acidentais, imprevistas, que não correspondem a uma causa determinada. A finalidade, pelo contrário, implica que existem causas que explicam os efeitos; o efeito deve-se diretamente a causas próprias, e não à coincidência acidental dessas causas.


A FINALIDADE NATURAL E A COSMOVISÃO ATUAL

Podemos dizer que existe uma finalidade na natureza? E, em caso afirmativo, em que consiste e qual é o seu alcance?

A existência de uma finalidade natural encontra tanto desafios como confirmações em três âmbitos: a cosmologia, a evolução e a auto-organização.

No terreno da cosmologia, o modelo da grande explosão original (o big bang) e a física atual manifestam que o nosso mundo depende de toda uma série de coincidências e equilíbrios: se a proporção de matéria e antimatéria no início do Universo tivesse sido um pouco diferente, ou se a massa do nêutron não fosse ligeiramente superior à do próton, ou se não houvesse um conjunto de propriedades físico-químicas muito específicas tanto no presente quanto no passado, a vida na Terra e nossa própria existência não se teriam produzido. Sobre esta base foi proposto o veio a chamar-se o “princípio antrópico”.

No âmbito da biologia, embora o progresso dessa ciência nos permita conhecer cada vez melhor as dimensões finalistas da natureza, uma das principais objeções contra a finalidade natural provém da teoria da evolução. O problema formulado pelo evolucionismo consiste em que, segundo essa teoria, a existência dos organismos vivos poderia ser explicada a partir da sua origem de formas menos organizadas, através de causas naturais; ou, segundo a síntese neodarwinista, como resultado da combinação de variações aleatórias (ao acaso) e de seleção natural.

O evolucionismo, de acordo com uma interpretação amplamente difundida, “expulsaria” a finalidade do mundo biológico. O evolucionismo, no entanto, não explica que existam na natureza virtualidades muito específicas, e que a atualização dessas virtualidades conduza a novas virtualidades, e assim sucessivamente. A evolução não explica em que consistem essas virtualidades nem a origem do dinamismo natural, dinamismo que, por sua vez, fundamenta o próprio evolucionismo. Por outro lado, seja qual for a sua origem, existe um alto grau de finalidade nos organismos. Recorrer ao binômio acaso-seleção não é suficiente para explicar completamente a produção de uma organização tão sofisticada, coordenada e funcional como o é, por exemplo, o olho humano.

Por último, o novo paradigma da auto-organização, amplamente difundido na atualidade, abrange um conjunto de teorias relativas aos diversos níveis da natureza. A idéia básica é que estados mais ordenados se formariam espontaneamente a partir de estados menos ordenados, e daí vem o nome de auto-organização. Esse pressuposto pode ser sintetizado em poucas palavras: a matéria possui um dinamismo próprio que, em condições adequadas, dá lugar a fenômenos sinérgicos ou cooperativos, e, através destes, forma-se espontaneamente uma ordem de tipo superior. Esta seria a origem da formação do Universo e de todas as suas partes.

A auto-organização é entendida, por vezes, como um pan-darwinismo naturalista que eliminaria definitivamente o problema do fundamento radical da natureza: a natureza seria auto-suficiente. No entanto, toda a reflexão rigorosa sobre a cosmovisão atual demonstra que ela nada tem a ver com esse naturalismo. A ciência experimental deve o seu grande progresso ao fato de ter adotado um método que tem limites precisos: não se propõe estudar filosoficamente a natureza como um todo, mas pressupõe a dimensão filosófica e proporciona elementos para aprofundar nela. É somente a dimensão filosófica que levanta a questão do fundamento radical da natureza.


INTELIGIBILIDADE NA NATUREZA

A natureza torna-se parcialmente inteligível quando é contemplada à luz dos conhecimentos proporcionados pela experiência ordinária e pelas ciências, mas só ganha o seu sentido pleno quando contemplamos o sistema da natureza à luz do seu fundamento radical e da vida humana.

Tenta-se por vezes explicar a natureza levando em consideração meramente a sua composição e as suas leis: a ordem seria o resultado de combinações aleatórias de processos e a finalidade seria apenas aparente. Sob esta perspectiva, e partindo da oposição entre acaso e finalidade, quanto mais se sublinha o papel do acaso, menos espaço há para a finalidade. Contudo, a oposição entre acaso e finalidade não é absoluta, pois o acaso exige a finalidade. Com efeito, não poderíamos sequer falar de acaso se não existisse um sentido de direção, como também não teria sentido falar de desordem se não existisse uma certa ordem.

As críticas contra a teleologia – a afirmação de que há uma finalidade no Universo – costumam partir do princípio de que há uma contradição absoluta entre acaso e finalidade; em conseqüência, as explicações em que intervém o acaso são consideradas argumentos contra a finalidade. Ora bem, ao afirmar a existência de uma finalidade não se exclui qualquer tipo de acaso. Simplesmente sublinha-se que o acaso e, de modo geral, qualquer combinação de forças cegas, não pode ser considerado como uma explicação total.

Ao comentar as idéias de Aristóteles sobre a finalidade natural, Tomás de Aquino propôs uma espécie de definição da natureza contemplada a partir do seu fundamento metafísico radical, que é muito original e supera em profundidade as idéias de Aristóteles, além de ser surpreendentemente coerente com a cosmovisão atual. Diz assim: “a natureza é, precisamente, o plano de certa arte (concretamente, a arte divina), impressa nas coisas, pela qual as próprias coisas dirigem-se para um fim determinado: como se o artífice que fabrica um navio pudesse outorgar às madeiras a capacidade de se movimentarem por si próprias para formar a estrutura do navio”.

Nesta quase-definição, merecem especial atenção três aspectos: a racionalidade da natureza, a sua conexão com o plano divino e a ênfase na auto-organização.

Sublinha-se, em primeiro lugar, a racionalidade da natureza, ao identificar a natureza com o plano de uma arte. Com efeito, o progresso científico manifesta até extremos antes insuspeitados a eficiência e sutileza da natureza. O sucesso da ciência amplia cada vez mais o conhecimento da racionalidade na natureza. Embora os produtos da tecnologia superem a natureza em alguns aspectos, sempre se baseiam nos materiais e nas leis que a natureza põe à nossa disposição; e, evidentemente, a natureza sempre leva vantagem sobre nós em diversos aspectos de grande importância.

Em segundo lugar, a conexão da natureza com o plano divino expressa o fundamento radical da sua racionalidade intrínseca: a natureza é uma manifestação do plano divino, e portanto de um plano sumamente sábio. Além do mais, a ação divina não se limita a dirigir de fora a atividade natural: o plano divino está inscrito nas coisas. O natural possui modos de ser próprios, com as tendências correspondentes, que por sua vez conduzem a resultados ótimos. Compreende-se, portanto, que não existe oposição entre a ação natural e o plano divino; pelo contrário, o plano divino inclui o dinamismo tendencial do que é natural e realiza-se através da sua atualização.

Em terceiro lugar, refere-se à auto-organização como uma característica básica da natureza. O exemplo é muito gráfico: como se se pudesse outorgar movimento próprio aos pedaços de madeira que constituem uma nave. Esta idéia corresponde, de um modo que não se podia suspeitar há sete séculos (quando foi escrita), aos conhecimentos atuais de auto-organização da natureza, que implicam um enorme nível de cooperação entre os seus componentes, as suas leis e os diversos sistemas que se produzem nos sucessivos níveis de organização. Fica assim sublinhada a direcionalidade da natureza, também no seu aspecto sinérgico, e insinua-se a possível emergência de novos sistemas e propriedades como resultado da ação sinérgica ou cooperativa.

Em definitivo, essa definição tomista exprime o núcleo da perspectiva metafísica e finalista da natureza, e tem grande importância para determinar o seu valor no contexto da cosmovisão atual.


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(1) Tomás de Aquino, Comentário à Física de Aristóteles, livro 11, capítulo 8, lição 14.
 

Mariano Artigas
Professor de Filosofia da Ciência da Universidade de Navarra (Espanha)
 
 
Fonte: Interprensa
 
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