“Frozen” é um filme cristão? Um olhar literário e teológico

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"Eu descobri um paradoxo: se você amar até doer, não haverá mais dor, mas somente amor" (Madre Teresa)
 
"Algumas pessoas merecem que a gente se derreta" (Olaf, o boneco de neve)
  
O que nos leva a gostar de um filme?

Eu acho que, sempre que assistimos a um filme, nós avaliamos o quanto ele representa algum aspecto da realidade. Espectadores diferentes se concentram, naturalmente, em aspectos diferentes: as feministas vão observar de que forma a mulher é retratada; os marxistas vão olhar como a economia e a história são mostradas, e assim por diante. Eu, como estudante católico de artes liberais, aos 21 anos de idade, muitas vezes me pergunto até que ponto os blockbusters de Hollywood apresentam a moral clássica judaico-cristã. E você pode imaginar a minha alegria quando entrei no cinema para ver a mais recente animação da Disney, “Frozen”, e descobri que poderia confundi-la com um texto de Karol Wojtyla, caso ele tivesse escrito histórias infantis ganhadoras do Oscar em vez de se tornar o papa João Paulo II.
 
Por que eu acho que esse filme é tão cristão? É simples: por causa do tipo de amor mostrado pelos personagens e por causa do tipo de amadurecimento que eles vivem. As duas personagens mais bem desenvolvidas e interessantes são as protagonistas, as princesas Anna e Elsa. Elas mostram ao espectador como a nossa compreensão do amor e da realização pessoal nos afeta. Anna tenta encontrar a felicidade nos braços de um homem que ela acabou de conhecer, enquanto Elsa vai se isolando cada vez mais ao longo do filme. No final, porém, fica claro que elas só podem achar a felicidade no amor sacrificial.
 
Hans e Anna se envolvem já no primeiro encontro, bem ao estilo tradicional da Disney. Mas, ao contrário de muitos dos filmes antecessores, “Frozen” mostra de duas maneiras a imprudência desse ato. A primeira é simples: retratando Hans como o vilão da história. A segunda é um pouco mais complexa: mostrando como Anna vai amadurecendo na sua compreensão do amor. O dueto de Anna e Hans, "Love is an open door” [O amor é uma porta aberta], que eles cantam pouco antes do noivado, propõe uma visão imatura e mundana do amor.
 
Na canção, os dois "amantes" cantam o amor como uma experiência libertadora, uma ideia que é perfeitamente cristã. Só que a liberdade que esses personagens cantam e a liberdade que os cristãos descrevem são bastante diferentes. Hans e Anna afirmam que dirão "adeus à dor do passado", porque procuram um tipo de amor sem esforço, que os liberte do sofrimento. Já para os cristãos, o desenvolvimento humano verdadeiro e o amor autêntico se concretizam na entrega e no sacrifício pessoal. Como Fulton J. Sheen escreveu, ao falar do mundo moderno, de nada adianta "tentar voltar ao Jardim do Éden sem subir a colina do Calvário". O amor é realmente libertador, mas é do pecado que ele nos liberta. Afinal, o que é o pecado, se não valorizar a si mesmo mais do que ao outro, constituindo com isto o contrário do amor?
 
Depois de abandonar o reino porque o povo passa a considerá-la uma bruxa, Elsa foge para a Montanha do Norte, onde canta a canção mais popular do filme, "Let It Go" [Deixe acontecer]. Esta música, na minha opinião, é o elemento mais incompreendido do filme. Já ouvi de tudo contra ela: houve desde quem achasse que essa música é um hino ao egoísmo até quem entendeu que ela mostra o repúdio de Elsa ao patriarcado e a sua adesão ao lesbianismo. Sério! A bem da verdade, as escolhas de marketing da Disney realmente não ajudaram muito a contextualizar a música. A Disney pediu que Demi Lovato gravasse um cover da canção, o que eu acho que foi um erro, já que a versão dela alimenta essa interpretação de que a música é apenas um hino de expressão pessoal e de egocentrismo, em vez de uma indicação da situação interior em que Elsa se encontra naquele preciso momento do filme: uma situação em que ela reconhece que os seus poderes não podem mais ficar escondidos, mas em que, ao mesmo tempo, ela ainda nega a sua necessidade de companhia humana.

Para quem contextualiza a música adequadamente, deveria ficar claro que o "reino de isolamento" da rainha Elsa não é o lugar certo para ela. Ela não precisa mais manter os seus poderes escondidos do mundo, mas está completamente carente de companhia humana. Durante a maior parte da vida, Elsa viveu o mantra "esconda-se, não sinta"; agora, ela decide "deixar acontecer", "fugir e bater a porta". Ela canta: "É hora de ver o que eu posso fazer, testar os limites e rompê-los, sem certo nem errado; sem regras para mim... Eu sou livre". Acontece que, assim como a ideia de Anna sobre a liberdade é falha, a de Elsa também é: a “liberdade” que ela ganha na Montanha do Norte é uma liberdade desprovida de relacionamento. Na canção, Elsa afirma que "o passado está no passado", mas ela continua tão isolada em seu castelo de gelo quanto estava antes, em sua casa.
 
As duas canções parecem muito diferentes quando ouvidas pela primeira vez, mas a letra de "Let It Go" lembra com força o dueto da irmã, "O amor é uma porta aberta". A semelhança fica especialmente evidente quando examinamos as imagens presentes nas canções. Portas, liberdade e deixar o passado para trás são conceitos mencionados de maneira semelhante. Em suas canções​​, as duas irmãs revelam duas reações possíveis à dor do isolamento. O que vem à mente, quando se consideram as ações das duas irmãs, é a máxima de que “a virtude está no meio de dois extremos”, um conceito que herdamos do filósofo pagão Aristóteles. Correr impensadamente para os braços de um homem, como fez Anna, ou isolar-se da sociedade com a desculpa de tentar "ser ela mesma", como fez Elsa, são duas atitudes que não podem trazer felicidade. Nos casos de Elsa e de Anna, “Frozen” e a Igreja estão perfeitamente de acordo. Ambas, afinal, questionam: qual é o propósito do poder quando ele não é usado como uma forma de amor sacrificial?
 
Para o cristão, o amor é um ato realizado com a consciência de que a outra pessoa é valiosa, boa e bela. O dueto de Anna e Hans, que contém versos como "Eu nunca conheci ninguém que pensasse de maneira tão parecida comigo" e "A nossa sincronia mental tem que ter uma explicação", parece mostrar uma atração de um pelo outro não baseada no que o outro é, mas apenas no quanto ele é parecido consigo próprio, o que faz com que cada um se sinta livre e aparentemente feliz. Parece um romance agradável, mas será que não é um tipo de narcisismo? Elsa também mostra algo semelhante ao narcisismo quando toma a decisão de se isolar na montanha, ainda que por razões compreensíveis, já que os seus cidadãos, supostamente leais, estão apavorados com ela. Ela corta todo contato humano, podando a própria capacidade de amar verdadeiramente os outros. Como C.S. Lewis escreveu, as portas do inferno são trancadas por dentro.
 
Depois de ser ferida por Elsa, Anna ouve dizer que só um ato de amor verdadeiro pode salvar a sua vida. Assim, pensando que Hans está apaixonado por ela, Anna procura ser beijada por ele, mas ele a trai: ela precisa, então, encontrar outro ato de amor verdadeiro. Mas a questão permanece: o que é o amor? De acordo com a tradição cristã, o tipo de amor que leva à realização humana é o dom de si mesmo. Mas será que “Frozen” concorda com isso?
 
Olaf, o boneco de neve responsável pelo lado cômico do filme, atua como professor de Anna no tocante ao amor. Depois que Hans trai Anna e a tranca no quarto (evocando o contrário da canção-tema do casal, “Love is an open door”), Olaf usa o nariz para abrir a porta e mostrar a Anna o que é o verdadeiro amor, salvando a vida dela. Ao falar com Olaf, ela finalmente admite: "Eu nem sei o que é o amor". E ele responde: "O amor é... colocar as necessidades de outra pessoa na frente das suas, como, você sabe, quando Kristoff trouxe você de volta para cá, para Hans, e deixou você para sempre".

 

Sim, você leu direito: um personagem de um filme da Disney identificou o amor, explicitamente, com um ato consciente, não com mero sentimento nem com obra do destino.
 
No clímax do filme, sabendo que precisa de "um ato de amor verdadeiro" para sobreviver, Anna tem que escolher entre "o beijo de amor verdadeiro", que ela acha que vai salvá-la, e o gesto de libertar a irmã das mãos do traidor Hans. Anna corre para salvar Elsa da lâmina assassina de Hans e se transforma em gelo justamente quando a faca a atinge. Todos acreditam que Anna está morta, mas, quando a irmã começa a chorar sobre ela, Anna começa a descongelar. O que a salvou não foram sentimentos românticos, mas o amor sacrificial. Assim como os cristãos acreditam que devem seguir a Cristo morrendo para si mesmos pelo bem dos outros, “Frozen” mostra que Anna só sobreviveu por causa do amor de doação. Além disso, Elsa reconhece que, ao responder a todos à sua volta com amor em vez de isolamento, ela pode controlar os seus poderes e tornar-se totalmente “ela mesma”. Para o cristão, uma pessoa só é plenamente ela própria, só é verdadeiramente feliz, depois de se abrir ao amor divino e responder com amor. “Frozen” não faz nenhuma menção ao divino, mas eu diria que o amor central de todo o enredo é o amor cristão.
 
Os criadores do filme provavelmente não pretendiam evangelizar o mundo, mas conseguiram comunicar uma verdade sobre o amor humano que é ensinada pelo cristianismo. São Justino Mártir escreveu no século II: "Toda a verdade, onde quer que esteja, pertence a nós como cristãos". Isso pode soar presunçoso para os não cristãos, mas esta citação contém a crença de que a verdade é una: que o mundo é fundamentalmente compreensível. Os cristãos acreditam que o fator unificador é Cristo. Ele é a chave que nos ajuda a compreender o sofrimento e o amor humano. Acreditem as pessoas na divindade de Cristo ou não, eu acho que todos podem ver conexões entre verdades, o que pode nos ajudar a reconhecer mais verdades. Eu não sei por que gostamos de um filme, mas acredito que a exposição às verdades sobre o amor, contidas em “Frozen”, nos abre para mais verdades, sejamos nós marxistas, feministas ou católicos.

(Humane Pursuits)

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