COMO ENTENDER A PROVAÇÃO?

 

A respeito de Eclo 2:

 

01.  Antes do mais, é oportuno lembrar que o livro em foco é chamado de “Eclesiástico” – pelo seu uso oficial que dele fazia a Igreja (no latim “Ecclésia”) – ou “Sirácida” – pois em grego o livro se chamava “Sabedoria de Jesus, filho de Sirac” (cf. Eclo 50,27). Embora este livro não figure no cânon (lista de livros inspirados) judaico, é muito citado nos escritos rabínicos antigos (Talmud etc.) e foi recebido pelos cristãos como livro inspirado (no Novo Testamento, Tg busca nele muitas expressões e Mt a ele se refere). Recentemente (1964), um longo texto que contém Eclo 39,27 até 44,17 em hebraico foi encontrado em Massada (Israel), numa escrita que data do início do século I a.C. Somando-se a outros fragmentos encontrados, apenas 8 capítulos não se acharam na versão hebraica. Provavelmente foi escrito entre os anos 190 e 180 a.C. Não se justifica, portanto, a sua exclusão da Bíblia, como fizeram os protestantes a partir do séc. XVI.

 

02.  O contexto histórico deste livro sagrado é importante. Com efeito, a Palestina acabava de passar para o domínio dos Selêucidas (198 a.C.). A adoção de costumes estrangeiros (“helenização”), inclusive promovida pelas autoridades, ameaça a integridade da fé e da moral do povo de Deus. Por isso, Jesus Ben (= “filho de”) Sirac se levanta contra isto, em nome da sabedoria e da lei divinas. De um modo surpreeendente, chega a identificar a sabedoria com a lei proclamada por Moisés (24,23). Recorda o valor da aliança estabelecida por Deus e o testemunho de fé de inúmeros membros do seu povo. A situação se tornaria insuportável, de modo que no ano 167 a.C. os chamados “macabeus” haveriam de se insurgir contra esta ocupação estrangeira.

 

03.  O livro do Eclesiástico ou Sirácida pode ser dividido em 2 grandes blocos (fora o prólogo do tradutor grego). No primeiro (Eclo 1-42,14) se recolhem diversas sentenças sobre a sabedoria (em si mesma; as qualidades que lhe acompanham; a vivência concreta da sabedoria – na família, no trabalho etc.), incluindo uma oração pelo povo de Deus (Eclo 36,1-17); no segundo bloco (Eclo 42,15-51) se contempla a sabedoria presente no universo e na história, incluindo no final (cap. 51) um hino e um poema.

 

04.  Eclo 2 faz parte, portanto, do 1º bloco do livro, fornecendo-nos uma das qualidades do verdadeiro sábio ou da verdadeira sabedoria: o santo temor de Deus; mais especificamente, o autor inspirado recorda de que modo um autêntico sábio deve demonstrar o temor a Deus. Que haja uma profunda relação entre sabedoria e temor de Deus, o autor já o recordara no capítulo anterior: “O princípio da sabedoria é temer ao Senhor” (Eclo 1,14 a) e: “A plenitude da sabedoria é temer ao Senhor” (v. 16 a) – ou seja, o temor de Deus é a fonte e o cume da sabedoria.

 

05.  Quais ensinamentos podemos colher de Eclo 2?

 

*     O verdadeiro sábio é consciente de que não basta conhecer a Deus e o que se refere a Ele; a autêntica sabedoria nos leva a crer no Senhor (p. ex., v. 6), a esperar nEle (p. ex., v. 9) e sobretudo a amá-Lo (p. ex., v. 16); ou seja, não existe sabedoria sem fé, esperança e amor, que  o Cristianismo apresentará como virtudes teologais, as mais importantes na vida de um fiel; são elas que nos unem a Deus (o v. 3 alude a isto: “une-te a ele e não te separes”) e assim nos impelem a servir ao Senhor (v. 1) – dimensão interior e exterior harmonicamente unidas na vida do sábio.

 

*     “Temer” o Senhor não significa “ter medo” de Deus (dos seus castigos, da sua ira etc.), mas reconhecer, movido pela fé e o amor, a grandeza (ser) e o poder (agir) de Deus – e, conseqüentemente, a nossa condição de criaturas (limitação e fragilidade). Em 6 versículos se indica concretamente o que implica este santo temor do Senhor (vv. 7-10 e 15-17): confiar na misericórdia divina (que nos protege e auxilia com seus favores) e agir conforme a sua vontade (purificar o coração e obedecer às divinas palavras). Deus toma a iniciativa em relação a nós, mas conta com a nossa resposta movida pela fé, esperança e amor.

 

*     Note-se que Eclo 2 sublinha tanto a misericórdia do Senhor para conosco (vv. 7.9.11.18) como a nossa confiança para com Ele (vv. 6.8.10), demonstrando assim que o temor nada tem que ver com o sentimento do medo (“não te apavores...” – v. 2), pois o medo (vacilação do ânimo diante do mal, real ou aparente, que nos ameaça) nos paraliza, ao passo que a virtude ou o dom do temor do Senhor nos mobiliza à ação (para a glória de Deus e a nossa santificação).

 

*     Eclo 2 destaca a importância do temor do Senhor – nos termos indicados – particularmente em circunstâncias desfavoráveis à nossa fé, ou seja, no tempo de “prova” (v. 1), “adversidade” (v. 2), “tribulação” (v. 11) ou “vicissitudes” (v. 4) – ou mais especificamente no tempo de “humilhação” (v. 5), quando o nosso amor próprio (egoísmo ou egolatria) é devidamente purificado (fruto do orgulho, alimentado particularmente pela vaidade e cobiça). É um tema freqüente no Antigo Testamento, muito recorrente, por exemplo, nos salmos (cf. Sl 3; 5; 6; etc.) e na vida dos profetas (cf. Jr; Is; etc.). Deus permite a provação (concupiscências, mundo) e a tentação (demônio) através das mais variadas situações não porque se alegre com o mal (Deus não é um sádico!), mas porque respeita o nosso livre arbítrio e sabe que de tudo pode extrair um bem maior, como ensinaria séculos depois o grande S. Agostinho.

 

*     Eclo 2 nos indica alguns frutos do tempo da prova: robustece-se a nossa fé (“o ouro se prova no fogo” – v. 5; “ai do coração fraco” – v. 13; “endireita teu coração e sê constante” – v. 2; cf. 6b); seremos exaltados no último dia (v. 3; cf. vv. 8s). Deus jamais nos abandonará, mesmo se fraquejarmos ao longo da estrada (v. 11: “salva no dia da tribulação”).

 

*     Vê-se assim que o verdadeiro temor do Senhor, que nasce da sabedoria, é acompanhado também da virtude da paciência e perseverança: “nas vicissitudes de tua pobre condição sê paciente” (v. 4); “ai de vós que perdestes a paciência [ou perseverança]” (v. 14). O termo grego “perseverança” comporta as nuanças de paciência (resistência ao mal presente) e esperança (desejo do bem vindouro). Quem olha com sabedoria para o passado sabe enxergar sinais da presença do Senhor junto do seu povo (v. 10).

 

*     Levando em conta o contexto histórico aludido acima, o v. 12 parece fazer um apelo à resistência do sábio (temente ao Senhor) durante a perseguição (frontal ou silenciosa) contra a sua fé e os seus costumes, como a que padecia o povo hebreu no séc. II a.C. em virtude da infiltração de práticas pagãs gregas. Condena-se aí a apostasia, ou seja o abandono da fé, mesmo que apenas exterior: “Ai dos corações covardes e das mãos fracas, e do pecador que segue dois caminhos” (cf. 2Mc 6,21-28). Não se pode servir a dois Senhor, ensinará Jesus Cristo 200 anos depois. É preferível cair nas mãos do Senhor do que nas dos homens (v. 18), exortação que também terá o seu eco nos lábios de Jesus: Não temais os que matam o corpo.

 

 Em conclusão: todo aquele que pretende servir ao Senhor – buscando a santificação e a salvação – não pode-se esquecer que felicidade e contrariedade, ou realização e provação, hão de sempre caminhar juntas nesta vida terrena. O maior exemplo nos deu o Filho de Deus feito homem, Jesus Cristo, cuja vida foi marcada exatamente pelo desprezo, incompreensão e perseguição. Páthos máthos, diziam os antigos, i.e. o sofrimento nos ensina, ou seja faz-nos crescer no amor a Deus, ao próximo e a nós mesmos. Ad augusta per angusta ou ad astra per áspera – às coisas elevadas por meio das difíceis. A porta estreita é o caminho seguro para a plena felicidade, que só encontramos no Pai, no Filho e no Espírito. 

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