Vocação, uma história de amor

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Artigo publicado na Revista Shalom Maná

A vocação, no sentido religioso, é a “inspiração ou moção interior pela qual Deus chama uma pessoa a determinado estado ou forma de vida”(1). Ela difere da aptidão para exercer determinada profissão justamente por ser um chamado que brota do mais profundo do ser, ali de onde se escuta e se responde à voz de Deus.

Diferente dos compromissos profissionais e sociais, que mesmo quando firmados numa fortíssima aptidão participam da instabilidade do ser humano, a vocação como chamado e resposta a Deus é definitiva, irreversível, dura a vida toda. Livre e definitivamente Deus chama, mas também livre e definitivamente devemos dizer “sim”, manifestando cada dia mais profundamente esta afirmação. Deus nos escolhe e nós escolhemos Deus, cada dia mais fortemente. “Como a vida matrimonial não se reduz à primeira declaração de amor nem ao tempo de noivado, assim a vocação é uma história de amor, que deve durar a vida inteira”(2).

Para tentarmos compreender um pouco do que seja esta “história de amor”, precisamos entrar mais profundamente no sentido da existência humana. A Sagrada Congregação para a Doutrina da fé ensina que “O amor é a vocação fundamental do ser humano”(3). Cada um de nós nasce do Amor, vive do Amor e caminha para o Amor, que é Deus.

Cada um de nós nasce e permanece na existência unicamente por causa do amor livre e gratuito de Deus, que nos chamou à vida. O amor de Deus é a nossa origem e é também a finalidade da existência. Cada um de nós nasce de Deus e para Deus, que é o Amor por excelência, do qual nossos maiores amores nesta vida são apenas uma pálida imagem.

Nascido do Amor e para o Amor, cada um de nós é mantido na existência pelo Amor. Caminhamos para o nosso fim, mesmo sem perceber, continuamente “mergulhados” no “oceano” do amor de Deus que sustenta a cada dia nosso caminho. Somos à imagem de Deus que ama continuamente, sem cessar. Então o amor não é somente nossa origem e nosso fim, mas o nosso caminho, o único meio de caminhar para o nosso objetivo.

Nosso caminho é o Amor. Somos fundamentalmente chamados para amar, para refletirmos a imagem e semelhança de Deus no mundo... amando, sendo “amor” como Santa Teresinha do Menino Jesus tão concretamente descobriu em sua própria vida, pela experiência, e por isso encontrou e viveu plenamente sua vocação particular na Igreja.

É dentro deste chamado primeiro e fundamental ao Amor, que nascem todas as vocações religiosas e estados de vida, porque é do chamado fundamental ao Amor que decorre o nosso chamado a ser e a realizar algo no mundo.

O Catecismo da Igreja Católica ensina que “a vocação última do homem é uma só, divina”(4). Cada um de nós responde primeiramente esta vocação pelo Batismo, e a realiza segundo estados e funções diversas, conforme o chamado único, particular de Deus a nós. Para cada pessoa há um chamado singular e insubstituível no universo e na história, que foi fixado pelo projeto de Deus que sempre vai muito além dos nossos próprios projetos, e cuja realização vai tão além da nossa capacidade humana, que jamais poderíamos concretizá-lo sem que Ele nos capacite.

Cada pessoa tem uma identidade única e todo chamado vocacional atinge esta identidade. O chamado de cada pessoa acontece no contexto particular da sua história, onde Deus entra em um diálogo íntimo com ela, um diálogo de amor, que vai durar a vida toda, porque nenhuma vocação se encerra somente no chamado. Toda vocação nos leva a amar sempre mais.

Somente Deus pode arrogar-se o direito de nos propor um destino que toca a nossa vida toda. Somente Deus tem esta força imperiosa capaz não somente de nos atrair, mas de capacitar-nos a dizer sim e perseverar neste chamado por toda a nossa vida, não estaticamente, mas crescendo no nosso “sim” a cada desafio sempre maior.

Da mesma forma, somente a pessoa chamada pode, livremente, acolher o chamado, e se dispor a ir aonde a força do chamado a atrai e impele a concretizá-lo. Por isso, na vocação, tanto o chamado como a resposta são de fundamental importância. Não podemos criar um chamado que Deus não nos fez, e, do mesmo modo, ninguém pode responder ao chamado por nós a não ser nós mesmos, que, livremente escolhidos, livremente podemos dizer “sim”.

Como acontece o chamado?

A vocação é puro dom de Deus que excede a inclinação natural da pessoa. É preciso descobrir os caminhos em que Deus nos espera passar para nos dirigir a palavra. Às vezes Ele chama direta e imediatamente, mas às vezes dispõe de outras maneiras pelas quais se aproxima de nós utilizando meios normais, nos quais está presente como instigador e condutor de suas mediações.
Como se distingue uma vocação autêntica de uma falsa vocação?

O discernimento torna-se praticamente impossível para uma pessoa sozinha. Distinguir adequadamente a voz da Verdade no imenso concerto de vozes que freqüentemente ameaçam afogá-la é obra exclusiva de músicos muito habilidosos e de diretores muito experientes, e não simplesmente dos que gostam de fazê-lo. Daí a necessidade do acompanhamento vocacional.

E a resposta?

A resposta ao chamado de Deus só pode ser dada mediante a fé. Infelizmente esta é a dimensão da vocação em que mais se costuma falhar. Podemos pensar que responder a determinadas vocações ou estado de vida pode ser mais fácil que responder a outros, que consideramos mais agradáveis, enquanto há outros que consideramos difíceis e atemorizantes. Cada vocação se apresenta na vida de cada pessoa de modo único. Há pessoas que hesitaram em dar sua resposta, enquanto há outros que não hesitaram no primeiro “sim”, mas chegaram a abandonar o seguimento já começado.

Há vocações mantidas a grande custo, em meio a abalos interiores e exteriores, algumas cujo seguimento chega a ser considerado verdadeiro martírio, assumido conscientemente, na independência em relação às forças contrárias, porque assim como conta com forças contrárias, conta com a mesma força, profunda e real para segui-la.

“Há uma espécie de tensão de forças entre algo que luta por sair e se expressar na vida, e algo que se retrai diante da passagem decisiva”(5). Toda resposta vocacional exige muitas renúncias, e isto acontece muito claramente no estado de vida: quem escolhe o matrimônio renuncia ao celibato e vice-versa. A renúncia, vista de longe, às vezes nos parece maior do que a opção. Esta é uma dificuldade que se pode encontrar no momento da escolha e pode se tornar uma perseguidora ilusão a querer fazer com que retrocedamos do caminho escolhido, constituindo uma das mais dolorosas tentações.

Qual a saída para este drama?

A abertura à origem de toda vocação e estado de vida: nascemos do Amor, para o Amor e para amar a Deus e aos outros. “Pois ninguém de nós vive e ninguém morre para si mesmo, porque se vivemos é para o Senhor que vivemos, e se morremos é para o Senhor que morremos. Portanto, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor” (Rm 14,7-8). Aquele ou aquela que não está disposto ou disposta a abrir mão de viver para si mesmo, para colocar como prioridade o amor a Deus e o dom de si, não está preparado para escutar chamado algum, nem assumir vocação ou estado de vida algum dentro da Igreja.

“Sem abertura, não é possível vocação alguma, que é dom e carisma que cada um recebe para utilidade comum”(6). É justamente na abertura e no serviço aos outros que a vocação vai se configurando e a nossa resposta vai se intensificando, apesar dos atritos, e, dizendo melhor, justamente por causa dos atritos.

Por isso, antes de responder a qualquer vocação, é necessário a disposição de sair do egocentrismo que destrói toda forma de autodoação. Não existe realização vocacional onde não ocorra esta determinação. Para aqueles que receberam uma educação onde se cultivou como valores prioritários o ter, o poder e o prazer, torna-se muito mais difícil acolher uma vocação que se apresenta como caminho oposto a estes valores, e perseverar nela até o fim. É aí que a formação para o amor contribui para o crescimento das vocações e a qualidade dos vocacionados, seja qual for o chamado de Deus para eles.

Deus é o Amor que envolve inteiramente a nossa vida, e no qual precisamos “mergulhar” cada dia mais, para encontrarmos a vida plena, a vida feliz! Perder-se em Deus é encontrar-se cada dia mais. Se tivermos sempre isto em mente não teremos medo de dizer “sim”, nem voltaremos atrás no “sim” pronunciado, mas ao contrário, nosso “sim” será sempre mais forte e profundo, para abranger os novos desafios que cada dia Deus nos propõe através da nossa vocação e estado de vida.

Notas bibliográficas:
1- Dicionário de Vida Consagrada. São Paulo: Paulus, 1994, p.1143.
2- Ibidem, p.1143
3- Declaração Persona Humana, n. 7; Cat 2392.
4- Cat 1260.
5- Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Paulus, 1993, p.1191.
6- Ibidem, p.1192.
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