Entendendo melhor a declaração de nulidade matrimonial para alguns situações específicas.

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Partilha de um caso vivido por uma pessoa. Abaixo, a resposta de um sacerdote.

 

 

No ano de 1990, então com 16 anos de idade, conheci um rapaz, que na época tinha 18 anos. Meus pais não queriam que eu namorasse, pois eram muito rígidos. Começamos a namorar, escondidos. Meus pais descobriram e deram-me uma surra muito grande, onde fiquei revoltada e quando esse rapaz me viu daquela maneira, um pouco machucada, convidou-me para ir embora com ele. Eu não o conhecia direito, mas a revolta foi muito grande. Então, não pensei e saí de casa sem que meus pais vissem.

Depois de uma semana sem darmos notícia, retornamos e tanto meus pais como os pais dele nos disseram que teríamos que casar. Ou seja, foi tudo muito rápido. Eu era de menor, e meus pais providenciaram toda a documentação para o casamento. Em julho do mesmo ano nos casamos, contra a nossa vontade, pois meus pais diziam que eu sendo de menor, eles é que decidiriam o que fazer.

Lembro-me que no dia do casamento, tanto eu como ele, choramos. Ele não queria de forma alguma casar, mas por imposição da família, foi feito. Um mês após o casamento, houve a primeira traição. Começaram as brigas e a falta de responsabilidade por parte dele, pois sempre trabalhei, e quando vi, estava sustentando a casa sozinha, construindo uma casa, comprando móveis. Na verdade, ele não queria compromisso algum. Só queria festas e bebedeiras.

Foram muitas separações, idas e vindas, pois quando nos separávamos eu ia para a casa de meus pais e eles diziam que eu teria que agüentar, pois foi um erro meu e que deveria assumir a culpa. Não deu certo em nenhum momento, até que engravidei em 1993 e quando fui dar a notícia, ele simplesmente virou a cara para mim, não quis saber de nada. Senti-me a pessoa mais humilhada. Fui à casa de meus pais e contei-lhes o que havia acontecido e meu pai então disse-me que eu poderia voltar para casa.

Nos separamos novamente, mas não retornei mais. Tive minha filha, hoje com 12 anos, na casa de meus pais, de onde não saí mais. Houve pouco contato com o pai dela quando ela nasceu. Nunca a ajudou em nada e não pedi ajuda de forma alguma em nenhum momento. Sempre trabalhei e minha família sempre me ajudou na educação da minha filha. O divórcio saiu em 1996.

Em 1999, casei-me no civil com um rapaz que assumiu completamente eu e minha filha. Um rapaz trabalhador, honesto, responsável, onde vivemos uma vida digna e tranqüila. Mas infelizmente, não podemos seguir as regras que a Igreja Católica impõe, apesar de ser a nossa maior vontade, de viver uma vida normal de um casal, onde sonhamos em um dia casarmos na igreja, perante o padre.

Sempre fui uma católica praticante. Porém, infelizmente, cometemos erros e que muitas vezes são para toda a vida. Sinceramente, na época em que ocorreu o fato, eu era muito imatura, sem experiência nenhuma de vida. Na verdade, nem a palavra e o sentimento chamado Amor não sabia distinguir o que era realmente. Foi um fato ocorrido em muito pouco tempo, onde na verdade foi um ato sem pensar.

Hoje meus pais se arrependem muito do que fizeram, pois viram o sofrimento pelo qual eu passei e que marcou minha vida, e no entanto muitas vezes sou discriminada por isso, tanto que meu companheiro e eu já sofremos tal preconceito.

Na paróquia onde houve o casamento, fui verificar o processo, pois necessitava de uma cópia e no entanto os documentos foram todos extraviados. Não há nada no arquivo, pois a igreja alega que perdeu os documentos. Eu precisaria desses documentos, pois naquela época o padre que celebrou o casamento fez algumas observações. Estou desesperada, não sei mais onde recorrer.

Resposta

Diante do fato apresentado pela internauta, temos quase certeza de que Deus não uniu esse casal para viver a vida toda desse jeito. Esse matrimônio, à primeira vista, apresenta uma fundada esperança de ser declarado nulo (inexistente) desde o seu início. Se o caso for levado a um Tribunal Eclesiástico, certamente seria configurado num ou mais motivos de nulidade, conforme a abordagem que segue:

1) Por grave falta de discrição de juízo

“São incapazes de contrair matrimônio: – os que têm grave falta de discrição de juízo a respeito dos direitos e obrigações essenciais do matrimônio, que se devem mutuamente dar e receber” (cânon 1095, 2º).

O ser humano é livre na hora de sua escolha. Mas, o uso de sua liberdade pode depender de seus próprios condicionamentos. Ex. paixão, sociedade, mundo. Os impulsos internos estão na origem do seu agir, influenciando assim as suas decisões. O problema consiste em saber se no ser humano resta a capacidade de agir e avaliar livremente, independentemente de seus condicionamentos.

O livre arbítrio faz parte do ser humano. Porém, é atingido pelas influências do momento, causando, no fundo uma vontade verdadeiramente não deliberada. Portanto, é necessário levar em conta o juízo manifestado, que na maioria das vezes, parte de uma vontade induzida, àquilo que não corresponde ao verdadeiro intelecto (intenção primária).

Em relação ao matrimônio, não basta o suficiente uso da razão. É necessário que a pessoa apresente uma adequada maturidade psicológica diante do que está assumindo. As pessoas afetadas pela falta de liberdade interna, ou pela grave falta de discrição de juízo, não seriam capazes de contrair o matrimônio, porque não estariam em condições de julgar os direitos e deveres provenientes do mesmo. No caso de comprovação disso, o matrimônio é inválido desde o seu início.

2) Por simulação

“§ 1. Presume-se que o consentimento interno está em conformidade com as palavras ou com os sinais empregados na celebração do matrimônio. § 2. Contudo, se uma das partes ou ambas, por ato positivo de sua vontade, exclua o próprio matrimônio, algum elemento essencial do matrimônio ou alguma propriedade essencial contraem invalidamente”(cânon 1101).

A simulação de consentimento é um ato deliberado da vontade, quando o consentimento é feito com fingimento, ou seja, quando a vontade interior da pessoa não corresponde às palavras pronunciadas por ela. Nesse caso, o consentimento é viciado e rende inválido o matrimônio. Juridicamente, se presume que as palavras pronunciadas sejam em conformidade com a vontade deliberada da pessoa. Por isso, toda e qualquer deformação deve ser provada. Até que não apareçam provas em contrário, o matrimônio goza do seu direito em si mesmo (favor iuris).

A simulação ou exclusão pode ser parcial ou total. É parcial, quando uma pessoa deseja contrair o matrimônio segundo o seu livre modo de pensar e não segundo as exigências teológico-jurídicas do matrimônio em si mesmo. Pode ser de uma parte ou das duas, combinados previamente. É total, quando a vontade deliberada da pessoa não pretende contrair o matrimônio com nenhuma pessoa, com uma determinada pessoa ou quando não pretende contrair um matrimônio que seja para toda a vida. Nesse caso, a sua verdadeira intenção era uma simples união de fato, ou uma mera convivência de amizade, ou um matrimônio temporário, ou um matrimônio que tende por si mesmo ao divórcio, ou um matrimônio ad experimentum (para fazer uma experiência, enquanto dura).

3) Por violência ou medo grave (can. 1103)

A violência, sendo causa externa, é maior do que outros vícios de consentimento. Já o medo, é menor, porque atenua o ato voluntário, embora seja um elemento que também vicia o consentimento, em grau menor.

Tanto a violência, quanto o medo passaram a fazer parte dos impedimentos matrimoniais no século III. No direito romano, o matrimônio contraído por violência era nulo pela sua própria natureza. As primeiras causas que declaram o matrimônio nulo por medo são do tempo do Papa Urbano II (1088-1099). Foram, mais tarde, incorporados no Código de 1917 entre os vícios de consentimento do matrimônio.

É importante distinguir as seguintes condições relacionadas ao medo:

1) Que o medo seja grave, no sentido absoluto ou relativo, relacionado a uma determinada pessoa, relativo a suas condições psíquicas ou circunstâncias concretas, sobretudo em relação à gravidade da ameaça;

2) Que o medo seja oriundo de uma causa externa, ou seja, provocado pelo partner ou por outra pessoa envolvida no caso;

3) Que os prejuízos causados pelo medo não tenham tido outra alternativa. Entre o medo e o matrimônio deve haver uma causalidade. Caso contrário, não rende nulo o matrimônio.

Deve-se examinar ainda se houve seriedade no medo causador e se a pessoa poderia ter se livrado de tal temor, em outro modo. Podem entrar nesse contexto as ameaças, por parte do sujeito ativo do temor, como penalidade, caso não for cumprida a exigência provocada.

Exemplos: ameaças de lesões físicas, ameaças de expulsão do lar, ameaças de não pagamento de mesadas ou contas aos encargos da vítima do medo. Em todo caso, é necessário verificar sempre a intensidade do temor intimidatório e se não há outra via, a não ser livrar-se do mesmo, escapando de suas conseqüências. Contudo, urge temporizar uma possível saída. O problema pode perdurar quando o elemento passivo do temor não encontra o lar desejado, porque lhe faltam as condições psicológicas que possam compensar a falta de liberdade anterior, tais como a harmonia no lar, para que tal enlace possa contribuir para uma vida realizada, de amor e doação recíproca. Esse elemento pode ser prejudicado por outras causas, que muitas vezes estão em íntima conexão, como é o caso da incapacidade psíquica para assumir as obrigações essenciais do matrimônio (can. 1095, 3°).

No que concerne à perda da documentação, via de regra, existe um livro cópia do matrimônio na Cúria Diocesana. E mesmo não encontrando nenhum documento sobre o matrimônio realizado, as provas da sua existência podem ser buscadas em fotografias, filmagem, testemunhas e no próprio ato civil, se acaso o casamento religioso foi registrado no Cartório, pelo fato de ser matrimônio religioso com efeito civil.

Diante do fato apresentado, que pode ser configurado nos motivos acima abordados, ou em outros vícios de consentimento, sou do parecer que essa pessoa mereça toda a atenção da Igreja. Deus quer a felicidade das pessoas, num lar a ser construído a dois, desde que haja o mínimo de condições de as partes se entenderem e construírem isso em modo decidido, não simulado e não influenciado por uma causa externa. Por isso, aconselhamos a parte interessada a procurar o Tribunal da Igreja, mais próximo de sua residência, para a apresentar o fato, na busca da melhor solução possível. Desse modo, a Igreja Católica se coloca a serviço do humano que fracassou uma primeira vez e que agora está mais amadurecido, em busca de uma saída, destinada à felicidade da vida a dois.

Frei Ivo Müller, OFM

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